sábado, agosto 28, 2010

YOU ONLY LIVE ONCE (1937)

SÓ VIVEMOS UMA VEZ




Um filme de FRITZ LANG


Com Henry Fonda, Sylvia Sidney, Barton MacLane, Jean Dixon, William Gargan


EUA / 86 min / PB / 4X3 (1.37:1)


Estreia nos EUA a 29/1/1937

Estreia em Portugal a 9/11/1937
(Cinema Tivoli, Lisboa)


Joan Graham: "Anywhere's our home. On the road. Out there on a cold star.
Anywhere's our home"

Após “Fury”, “You Only Live Once” é o segundo filme americano de Lang que, nos anos 30, faria ainda nos Estados Unidos. Mais uma vez com Sylvia Sydney no papel principal feminino, actriz de que Lang iria descobrir a secreta e incrível personalidade.
“You Only Live Once” é uma obra que se entronca na tradição do film-noir americano, para, através de um argumento típico e excepcionalmente bem construído, atingir o cerne da temática fundamental de Lang: o problema da culpa e a interrogação sobre o sentido da justiça. Mais uma vez a multidão se encarniça contra um inocente, mais uma vez diálogos concisos e fundamentais nos dão o retrato da mesma implacabilidade, mais uma vez o universo exterior é delirantemente persecutório e denunciante, sempre pronto a colaborar com a polícia na “caça ao homem”, sempre pronto a vingar-se por conta própria. Mais uma vez, Lang dá-nos um retrato da sociedade americana que substancialmente não difere do que traçara da sociedade alemã.
Mas onde a temática de Lang atinge a sua máxima profundidade é na caracterização dos personagens Eddie, Joan e o padre. Joan e o padre representam o respeito pela legalidade (a primeira até certa altura, o segundo quase até à morte), na qual tentam fazer entrar Eddie que, desde o início, tem as saídas cortadas. Ambos ignoram a realidade social para pretenderem viver na ficção legal. Por causa de Joan e pelo respeito por essa ordem, Eddie é preso; por causa do padre a arma não é entregue a Eddie. A noite da execução – momento máximo de cinema de Lang – é a catársis de tudo isso. É após ela que Sylvia Sydney se dispõe a tudo, sabendo já que nenhuma outra regra, que não a relação entre ela e Eddie, os pode salvar. A morte do padre (leia-se a do último valor moral, com função muito ambígua no filme) é o que a liberta. Como liberta Fonda, (“fizeram de mim um assassino”) que finalmente se identifica com a sua imagem e assume plenamente a sua revolta. E, de certo modo, liberta o próprio padre, cuja última ordem pode ser a compreensão final do absurdo da função medianeira que até aí vinha exercendo.
Neste filme prodigioso tudo joga no sentido da sufocação, desde logo do início, com o jogo de sombras-luzes-grades a fechar todos os espaços à volta de Eddie. “Ainda és um dos nossos”, gritam-lhe os presos quando ele é liberto. Antes que o dissessem já o sabíamos, pois todos os enquadramentos e sinais nos davam essa impossibilidade dum estatuto diferente. O “momento de felicidade” (a lua de mel) é acompanhado pelo coaxar das rãs, numa sequência diante da qual os adjectivos se esgotam. À dialéctica rãs-flores se resume já a relação passado, presente e futuro, com o belissimo plano da imagem dos dois, reflectida na água pantanosa e nela aprisionada.
Da presença efémera e ameaçada de Sylvia Sidney ao olhar vazio de Fonda, o que nos vai sendo transmitido é a vertigem do caminho barrado e a definitiva suspensão de qualquer outra saída que não seja a morte. Mais uma vez nos encontramos perante o irredutível pessimismo de Lang: só se vive uma vez, mas só na morte existe possibilidade de libertação. Insistindo nessa irredutibilidade da oposição homem-mundo, inocência-culpa (Fonda é “culpado” enquanto é inocente e “inocente” quando é culpado; a inocência total só existiu no único momento em que matou), Lang desmonta até ao absurdo os mecanismos que comandam um e outro e nos quais se funda a “genealogia da moral”.
O que admira mais em Lang é a sua portentosa arte de construção cinematográfica. A estrutura dos seus filmes atinge quase sempre uma enorme complexidade, mas nem por isso deixa de ser facilmente inteligível por todos. Um conjunto fabuloso de montagens paralelas e elipses garantem aos seus filmes a simbiose perfeita entre a simplicidade e a complexidade. Mas acima desta imponência encontra-se uma sensibilidade de trato com os materiais que utiliza que transformam as suas obras em monumentos de beleza visual transbordante. “You Only Live Once” pode ser entendido como uma tragédia moderna do homem em luta contra o seu destino. Uma luta que tem na morte a única saída e por isso o filme de Lang se desenrola no ambiente escuro e perigoso da noite, onde os personagens se deixam enlear na teia de aranha que os irá consumir.

1 comentário:

Nowhereman disse...

Os belissimos actores Henry Fonda e Sylvia Sidney encarnam aqui os percursores de Bonnie & Clyde.
Aliás Arthur Penn deve ter vindo beber aqui (e também nos "Filhos da Noite" do Nicholas Ray) muita da inspiração com que realizou o famoso filme de 1967.